Em resposta ao forista Sérgio Gonçalves e outros com a mesma opinião, e pedindo desde já desculpa a todos por prolongar o off-topic mas este toca-me directamente. Ponto prévio: sou médico interno de uma especialidade que não interessa para o caso, terminei o curso há 5 anos e trabalho há 4 (o ano “perdido” neste intervalo foi passado a estudar para o famoso exame Harrison que nos permite seriar para escolher uma especialidade).
O problema neste momento não é a falta de médicos, mas são essencialmente a sua distribuição geográfica global, a disponibilidade específica de algumas especialidades em alguns (vários) pontos do país e a capacidade que temos enquanto SNS de formar novos especialistas nas diversas áreas do conhecimento médico disponíveis para assumir a cobertura dessas necessidades.
Outro problema que se coloca actualmente é que a quantidade de alunos nas escolas médicas portuguesas já excede não só a capacidade de docência teórica nesses estabelecimentos mas, muito mais importante que isso (!!!), a capacidade de hospitais, centros de saúde e seus profissionais receberem alunos e colocá-los perante os problemas com que vão lidar na sua vida profissional futura. Imaginem o que é irem a uma consulta de Cardiologia ou de Reumatologia com um médico especialista e terem lá 10 alunos a ver a vossa consulta. Acham que um médico tem capacidade e tempo para explicar a esses 10 alunos porque tomou a decisão de vos dar o fármaco X em vez do Y ou porque vos pediu que fizessem uma ressonância magnética em vez de uma radiografia ou que sinal do exame físico lhe chamou a atenção e como o devem procurar? Se acham, eu garanto-vos já que não tem. Pensem ainda se gostavam de ser auscultados ou que o vosso joelho doloroso fosse examinado por 10 alunos diferentes. Imaginem também que o médico especialista tem 10 consultas marcadas nessa manhã, tendo 30min para cada e agora imaginem quantas manhãs precisava para ver os mesmos 10 doentes e explicar a situação clínica de cada um desses doentes aos alunos (e imaginem o reflexo disso em tempos e listas de espera). A escola médica pode ensinar muita teoria e muito suporte científico (que é fundamental!) mas não consegue fazer passar esse suporte para um momento de avaliação de uma pessoa que procura ajuda e para o momento da decisão do que é melhor propor ao doente. Isso aprende-se enquanto já se pratica, ao longo do chamado internato médico numa área específica da Medicina.
É como quando o passe do André Horta sai 5m para a trás do Galeno e o obriga a parar - o André Horta sabe que o passe tem que pedir a corrida e a recepção orientada do Galeno mas a qualidade com que o faz só aumenta se ele o fizer várias vezes, em diferentes circunstâncias e se for submetido a diferentes níveis de pressão de cada vez que o faz; mais, até pode treinar muito e imaginar o passe milhares de vezes, mas vai ter que o errar várias vezes antes de o acertar de forma consistente. No caso do André Horta, o erro não é problemático, a bola sai do campo ou o desequilíbrio perde-se porque o Galeno travou e ele é assobiado ou insultado por um paspalho qualquer (incluo-me alegremente nesta categoria) que acha que sabe fazer o trabalho dele melhor que ele; no caso da vossa consulta ou ida à urgência, o passe atrasado ou adiantado é a diferença entre melhorarem em 3 dias e irem trabalhar, ou ficarem mais 1 mês de cama ou que vos seja dado um medicamento que não era o ideal ou até, quem sabe, vocês ou o vosso familiar morrerem. Quando termino o curso de Medicina, vou errar nas minhas decisões e no que vos proponho (sim, os médicos erram e vivem com isso!) por mais suporte teórico que tenha, por isso preciso de alguém mais experiente, mais atento ao que interessa (que também erra mas menos, o Messi também falha passes, e já sabe lidar e resolver as consequências do seu erro), que me ajude a reconhecer em que contexto estou que me diga que aquilo que pensei fazer pode correr bem mas que se calhar se der mais um toque na bola e fizer o passe depois, se calhar vou conseguir por a bola exactamente onde o Galeno a quer e chegar da melhor forma possível ao objetivo que é o golo ou, no meu caso, a resolução do vosso problema de saúde, seja ele um AVC ou uma dor de costas. Actualmente não existem profissionais experientes e serviços suficientes para garantir um internato médico de qualidade a todos os recém-formados em Medicina que se pretender vir a ter com o aumento do número de vagas no curso.
Em resumo, quando se termina o curso de Medicina, não se sabe tudo sobre todas as áreas da Medicina e não se passou por situações suficientes para praticar Medicina especializada nem mesmo generalista (que não é o que faz falta actualmente). Para formar um especialista em Ortopedia, Neurologia, Cirurgia Vascular, Medicina Familiar (o que quer que seja que faz falta cá em Braga, em Bragança, em Elvas ou na Ilha do Corvo), são precisos mais anos de prática tutelada por médicos mais experientes e estudo intenso (em horário livre e não remunerado que excede largamente as 40h semanais que todos temos que cumprir e que já é também ela largamente excedida sem remuneração adicional).
Posto isto, é fácil compreender que esse problema não se resolve com o aumento do número de vagas num curso de Medicina ou com o aparecimento de cursos de medicina no privado, cujo processo de seleção de candidatos dificilmente ultrapassará a componente económica (da próxima vez que forem à urgência perguntem-se se preferem ser avaliados por um médico que ultrapassou um conjunto de provas - que podem ser mais ou menos ajustadas, não é isso que está em análise - ou por um cujos pais têm a capacidade de pagar propinas absolutamente colossais para dar ao filho aquilo que ele (acha) que quer fazer da vida). O problema não é resolvido por aumentar o número destas vagas pré-graduadas no curso porque:
1. Não há capacidade das escolas médicas, hospitais e centros de saúde associados de formar e preparar esses alunos para o trabalho que deles é esperado no final do curso (e abrir cursos privados altera significativamente a premissa de que quem é formado em medicina sejam os que mais se esforçaram por esse objetivo);
2. Não há capacidade para, após a formação pré-graduada, garantir a formação especializada nas diferentes áreas da Medicina que são actualmente necessárias em vários pontos do país.
Por conseguinte, o aumento destas vagas traria duas consequências importantes - a diminuição da qualidade dos médicos à vossa disposição no SNS e o aumento do número de médicos sem qualquer diferenciação, saturando o mercado com este tipo de médicos (cuja tendência natural é deixarem de existir) e sujeitando estes profissionais a condições de trabalho inaceitáveis (já estamos nesse ponto) e que impossibilitam que vos seja dado o melhor cuidado possível.
O papel da Ordem dos Médicos não tem nada de corporativista, a Ordem luta simplesmente para que haja uma formação de qualidade e, em consequência, uma maior qualidade nos cuidados que os doentes precisam.
Por fim (e isto é a minha opinião e suspeita) as notícias que têm constantemente vindo a bombardear e intoxicar a opinião pública sobre falta de médicos (ou pior, cartas emocionadas ao Marcelo a dizer que “não consegui entrar em Medicina e que vou ter que ir para fora”) não são provavelmente mais do que encomendas de grandes grupos económicos a quem interessa saturar o mercado e promover a Medicina privada, bem como o seu ensino em contexto particular, que se pode revelar altamente lucrativo visto que é um curso que muita gente considera/deseja.
Espero ter ajudado. Se me quiserem contrariar, apontar alguma falha do raciocínio ou na perspectiva que tentei transmitir, tenho todo o gosto em continuar a discussão noutro local e não importunar outros foristas. Desculpem o testamento.