Já começaste a trabalhar no Shakhtar Donetsk?
Sim.
Qual foi a impressão, comparando com o Benfica?
Sem querer estar aqui a entrar em grandes romantismos, o Benfica é um dos maiores clubes do mundo, em termos de adeptos e do impacto social que tem, é uma coisa impressionante. Um dia estava a chegar ao Estádio da Luz, ali numa rua inclinada que tem um semáforo, e sem querer deixei descair um pouco o carro e bati no da frente. Saí, pedi desculpa e disse ao homem para preenchermos os papéis. Ele fica a olhar para mim, até que pergunta: "O senhor é o José Boto do Benfica?" Respondi que sim. E ele diz assim: "Ó homem, então vá lá trabalhar, não se preocupe, vá embora". Meteu-se no carro e foi-se embora [risos]. Conheço bem a Europa do futebol e posso dizer que não há muitos clubes com o impacto que o Benfica tem. Nisso é óbvio que o Shakhtar não tem a mesma dimensão, até porque é um clube que era de uma zona na Ucrânia e neste momento nem sequer está lá, está desterrado da sua zona natural de adeptos e daquilo que é a sua implementação social. O clube neste momento está sediado em Kiev e logo aí é uma diferença grande, porque não está na sua zona. Agora, a nível de recursos é um clube que tem pelo menos o nível do Benfica, porque é um clube completamente moderno, que até me surpreendeu a nível de tudo o que é a estrutura, para um clube que ainda por cima está fora da sua zona. Porque o clube tinha um estádio que era um dos melhores da Europa, tinha uma academia brutal e de repente teve de abandonar isso tudo e criar novas estruturas, mas tudo o que está a criar é top. E depois é um clube que nos últimos anos tem dominado a liga ucraniana, é presença assídua na Liga dos Campeões e em 2008/09 ganhou a Liga Europa.
Em termos financeiros tem mais poder do que o Benfica?
Sim, mas também tem targets diferentes. Ainda estou um bocado a perceber o clube, porque entrei há pouco tempo...
Mas já percebeste que vais ver muito Brasileirão, porque contratam muitos brasileiros.
[risos] Sim. Mas eles contrataram-me também para terem uma abrangência maior no scouting e organizarem melhor o departamento, com base de dados, para ser um clube sempre presente em tudo o que são grandes competições, tal como o Benfica estava. É óbvio que por uma questão de tradição, por algo que tem funcionado bem, o mercado brasileiro é prioritário. Se olharmos para aquilo que era agora a seleção brasileira, tinha dois jogadores que jogavam no Shakhtar e mais três que já tinham passado antes pelo Shakhtar: o Fernandinho, o Willian e o Douglas Costa. Portanto, num universo de 23 jogadores ter cinco internacionais que passaram pelo Shakhtar é um sinal de que se tem trabalhado bem nesse mercado.
Isso acontece porque é um mercado barato e com muito talento bruto?
Não é tão barato assim, porque os jogadores talentosos agora saem por €60 milhões [risos]. Mas o Shakhtar é uma boa porta de entrada para os brasileiros, assim como foi há uns anos Portugal. O clube está na Europa, tem um bom nível, joga na Champions League e isso é apelativo para um jogador. Se calhar o Shakhtar é mais apelativo para um jogador brasileiro do que para um jogador português, por exemplo.
Gostas de ver os jogos brasileiros?
Gosto, porque é talvez dos poucos sítios onde o talento ainda se sobrepõe a tudo. Os jogos são um bocadinho anárquicos em termos táticos...
É mais fácil observar um jogador assim?
É, é, porque tu vês aquilo que o jogador vale. Como o jogo não é muito controlado pelos treinadores, felizmente, tu consegues ver o jogador naquilo que é natural dele: o entendimento que ele tem do jogo, a sua qualidade técnica, as decisões que toma, que não são padronizadas, são mais o que lhe sai da cabeça... E é por isso que são um produtor de talentos como não há mais nenhum no mundo.
Na altura em que o Jorge Jesus foi para o Sporting, falou-se que ele te tinha convidado para o acompanhares. Foi assim?
Prefiro não responder. Isso são coisas que já passaram, já estão no passado.
E agora antes de anunciares que ias para o Shakhar falou-se no interesse do Manchester United.
Não, ninguém falou comigo sobre isso. Se calhar também é importante esclarecer bem isto, porque na última assembleia geral do Benfica até confrontaram o presidente com a minha saída: a decisão de sair foi minha e foi apresentada ao presidente quando já estava tomada. E queria também dizer, para que as pessoas o saibam, que o presidente, mais do que ter sido meu presidente durante estes 11 anos, é também um amigo. Portanto, quando falei com ele e apresentei a minha decisão já não havia volta a dar, porque tinha a ver com a minha vontade de sair de Portugal e experimentar outros desafios. E também tinha a ver com a possibilidade de poder trabalhar com um treinador que, em termos daquilo que são as ideias de jogo, se aproxima mais de mim - ou melhor, eu é que me aproximo mais dele - do que com os outros treinadores com quem trabalhei até agora. E também teve a ver com o projeto do clube e com a forma como mo apresentaram, através do CEO do Shakhtar, Sergey Palkin, que é uma pessoa espetacular. Quando ele me apresentou o projeto, fiquei logo apaixonado. Portanto, quando falei com o presidente, já era uma decisão tomada, não era uma questão de dinheiro, nem nada que se pareça, porque não havia mais dinheiro que me fizesse ficar. O presidente tentou demover-me, mas depois também percebeu as minhas razões para querer mudar de ares e continuamos amigos.
Gostas das ideias do Paulo Fonseca?
Sim, em termos daquilo que é a sua ideia de jogo, ele é, para mim, dos melhores treinadores portugueses - talvez o melhor mesmo. O que é diferente de ser o melhor treinador português ou não, isso já é outra coisa. O melhor treinador é aquele que ganha. É a única forma que tens de ver isso. O gajo que ganha é melhor do que o gajo que perde, pronto. Mas depois há uma questão de gosto e daquilo em que tu acreditas, e nisso o Paulo é, para mim, o melhor treinador português, porque tem uma maneira de jogar com a qual eu me identifico.
Então não gostas muito das ideias de Rui Vitória e Jorge Jesus.
São treinadores com os seus méritos, como é óbvio, mas em termos daquilo que é a ideia de jogo, estou muito mais próximo do Paulo do que qualquer treinador que tenha passado pelo Benfica desde que lá entrei.
Estavas a dizer que o melhor treinador é sempre aquele que ganha. E o melhor scout?
É difícil dizer. Se calhar é aquele que acerta mais vezes. Mas como o acertar mais vezes não depende de ti... Imagina isto: tu aconselhaste dez jogadores a um clube médio da Europa. Nenhum desses dez jogadores deu no teu clube, mas os dez deram no City, no Liverpool, etc, depois de terem saído do teu clube. Então e agora? Como é que tu valorizas o scout? Podes sempre olhar para isto de duas formas: o scout não é bom porque não percebe o que o clube dele precisa ou então é muito bom porque foi buscar jogadores de qualidade que depois têm uma projeção muito maior.
Quando falei com o Gilles Grimandi, chief scout do Arsenal, ele disse que tu eras um dos melhores do mundo.
O Grimandi é um gajo porreiro [risos]. É uma pessoa que tem uma experiência enorme, com muitos anos de scouting, sempre como braço direito do Wenger. Se calhar o trabalho dele também era mais fácil porque conhecia perfeitamente o Wenger e sabia perfeitamente o que ele queria. Se calhar o Grimandi disse isso muito pela tal rapidez de decisão. Em 11 anos já vimos 'n' jogadores a aparecerem e acertámos em muitos. Como o Hazard, que vimos com 16 anos e achámos que ia ser top mundial - e depois se ele realmente chega lá isso também te dá um certo reconhecimento por parte dos colegas. Às vezes há casos em que há colegas têm dúvidas e eu atravessava-me logo por eles e dizia que aquele ia dar, e depois se dava...
Por exemplo?
O Courtois e o De Bruyne, por exemplo. Vi-os ainda muito novos, na altura em que saltaram dos juniores para a equipa principal do Genk e ainda não eram titulares. Alguns colegas na altura tinham dúvidas, porque o De Bruyne era muito mole, não tinha intensidade e não sei quê, mas pronto, isso é normal, às vezes achamos umas coisas e às vezes outras.
Mas dá para apontar uma lista de melhores scouts do mundo, como se faz com os treinadores?
Acho que não. Tens é pessoas que são muito experientes na área e que conseguem ter uma flexibilidade grande para perceber o que os treinadores e os clubes querem, e que também têm uma capacidade para dirigir bem os departamentos de scouting, rodeando-se das pessoas certas. Se calhar é mais fácil dizeres o que é um bom chief scout do que um bom scout. Porque um scout também depende muito... Não vou dizer o nome dele, mas tenho um amigo meu que trabalhava para um clube francês de nomeada e ele dizia-me: "Eu não sou scout, eu sou fazedor de relatórios. Eu faço relatórios e depois ninguém os lê". [risos] Assim nunca sabes se essa pessoa é boa ou não, porque ninguém a ouve. Há clubes onde realmente isso se passa, há scouts mas depois ninguém lhes liga muito.
Temos agora um mês de mercado pela frente. O que te parece que os clubes portugueses podem conseguir?
Acho que, nesta altura, com o mercado em plena ebulição, o que os clubes portugueses normalmente conseguem, como têm provado nos últimos anos, são alguns jogadores que são mais-valias para a nossa liga, já com bons CVs, com experiência, e que não estão a dar e são descartados por clubes maiores. O foco é mais esse, já ninguém vai ao mercado agora para ir buscar um jovem de futuro, porque isso já houve o ano todo para ver. É altura de os clubes ficarem atentos, porque às vezes as coisas aparecem. Por exemplo, tenho uma história gira que acho que as pessoas não sabem, sobre o Aimar. Eu e o Rui Costa adorávamos o Aimar. E houve uma altura em que lhe disse: "Ó Rui, olha que o Saragoça está para descer". E ele: "Eh pá, se calhar é uma boa altura para tentarmos o Aimar". E então todos os domingos trocávamos mensagens a festejar as derrotas do Saragoça [risos]. Coitados deles, mas nós estávamos a torcer para que perdessem e descessem de divisão, para depois irmos buscar o Aimar. Portanto, aqui nem é uma questão de scouting, é uma questão de perceber as oportunidades e isso também acaba por fazer parte de um gabinete. Se perceberes que um jogador vai deixar de ter espaço num sítio, podes atacar essa oportunidade, no momento certo.
Pois, ia dizer-te que se calhar neste mês um scout até nem tem muito para fazer, mas pelos vistos até tem, numa outra perspetiva.
Pois, isto depende sempre dos clubes. No meu caso, no Benfica e no Shakhtar, nós avaliamos aquilo que são as oportunidades que surgem no mercado. Se nos dizem que há a possibilidade de contratar determinado jogador, temos de ver se vale a pena ou não. Ou seja, não podemos tirar férias nesta altura. Um scout que tire férias nesta altura é porque não tem muita importância no clube [risos].
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