O passado dia 31 de Julho marcou o regresso dos adeptos aos estádios em Portugal. Mas terá sido este dia, no Estádio Municipal de Aveiro, palco da Supertaça, o marco temporal que ditou o fim da discriminação do público desportivo? Os primeiros sinais dizem-nos que não.
O regresso da época desportiva 2021-2022 era aguardado com elevadas expectativas, sobretudo pelo desconfinamento que, supostamente, devolveria a liberdade de qualquer adepto apoiar a sua equipa no habitat natural, o espaço insubstituível onde fervilham todas as emoções: a bancada.
Mas a poucos dias do começo oficial do campeonato, o Governo não resistiu a envenenar o presente, criando o Cartão do Adepto. Sob o pretexto de "promover a segurança nos recintos desportivos, assim como combater o racismo, a xenofobia e a intolerância", aqueles que queiram entrar em certas áreas do estádio (as zonas com condições especiais de acesso e permanência de adeptos, «ZCEAP») só o poderão fazer se forem portadores deste cartão. Concretamente estamos a falar do acesso a dois tipos de zonas: as destinadas às claques e aos adeptos visitantes.
É mais uma burocracia, que obviamente será paga pelos adeptos no custo dos bilhetes (recorde-se que Portugal é um dos países, a nível mundial, onde os bilhetes são mais caros – acima da Alemanha, por exemplo).
Mas, muito mais grave do que isso, é a ofensa à liberdade e à privacidade dos adeptos, que serão obrigados a transmitir um conjunto de dados pessoais, por culpa do seu amor à camisola...
E, cereja no topo do bolo, é a ilegalidade promovida pelo Governo: é que a emissão do Cartão do Adepto tem como pressupostos a entrega de cópia do cartão de cidadão, quando, como se sabe, desde 2007, é proibido reter ou guardar este tipo de documentos sem o consentimento do titular, e a idade mínima de 16 anos.
Ora, na era da protecção de dados e da privacidade, o Governo e a Liga portuguesa optam por tratar de forma persecutória todos os que, e são milhares, pretendam ver o jogo de pé ou, em muitos casos, ou quando a sua equipa joga fora. Como se isto não bastasse, os autores desta ideia impedem pais e filhos, avós e netos de verem jogos juntos nos contextos anteriormente referidos.
Exagero ou especulação? De maneira alguma, basta olhar para a jornada inaugural da Liga portuguesa. Na sexta-feira o Vizela joga em Alvalade. Os vizelenses já revelaram que o Sporting, em cumprimento da nova legislação, apenas disponibiliza bilhetes no sector visitante para portadores do Cartão do Adepto. Assim, nenhum adepto do Vizela com menos de 16 anos pode assistir ao encontro através dos bilhetes que se destinam para tal propósito.
Os motivos para tudo isto são claro: o preconceito e a generalização com origem numa suposta análise de risco que conclui que o grau de perigosidade dos adeptos varia em função da sua localização nos recintos. Esta medida, com o alto patrocínio do Ministro Cabrita e do Secretário de Estado do Desporto e da Juventude João Paulo Rebelo, contribui para a segregação entre adeptos de futebol, a elitização de um desporto de natureza popular e a dificuldade de passar o testemunho de geração em geração.
Alguém julga imaginável a introdução de um regime deste estilo noutros sectores da sociedade? Teria o mínimo de sentido a introdução de um cartão de consumidor nocturno, para acesso a bares e discotecas, pelo simples facto de ocorreram de tempo a tempo desacatos nestes recintos? Logicamente que não, basta um documento de identificação. O futebol também deveria continuar a ser assim.
Se argumentos faltassem, veja-se o que aconteceu lá fora: Inglaterra, Itália e Polónia, perante o insucesso prático e até os efeitos contraditórios do cartão do adepto (com as zonas destinadas a visitantes vazias e os adeptos visitantes distribuídos por outras áreas dos estádios), abandonaram este modelo.
O que precisamos são de medidas que beneficiem o espectáculo, promovam a ida aos estádios (a média de 8% de assistência na 1ª jornada da Taça da Liga não faz ecoar os alarmes?) e contribuam para a segurança (quanto mais tempo teremos de esperar pelo safe standing?), com uma fiscalização actuante face a quem corrói o desporto. Ou estamos esquecidos da inoperância de quem lidera o IPDJ na vigilância e denúncia de alguns dos casos que mais têm prejudicado o desporto em Portugal?
A reabertura do país devia servir para reaproximar os adeptos dos estádios, não para os castigar com este cartão vermelho e ordem de expulsão.
Autor: Francisco Camacho
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