Parece-me que, apesar de extenso, faz sentido colocar aqui o artigo que faz capa da edição d'A BOLA. A hipótese de que um jogador possa sair a qualquer momento mediante o pagamento de uma verba correspondente aos salários que receberia até final do seu contrato coloca em causa o nosso modelo de negócio. A meu ver, o futuro da SAD está em perigo.. Mais: o futebol português, como actividade profissional, está ameaçado....
SUPREMO TRIBUNAL ABRE ESPAÇO PARA UMA ESPÉCIE DE CASO BOSMAN À PORTUGUESA
Clubes vão perder armas para segurar os jo gadores
Um processo aberto no ano 2000 que opôs o jogador Zé Tó ao União de Leiria foi agora concluído pelo Supremo Tribunal de Justiça, que considerou nulas três cláusulas do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado em 1999 entre a Liga de Clubes e o Sindicato de Jogadores. Os futebolistas que rescindam unilateralmente os seus vínculos com os clubes deixam de ter de pagar indemnizações de valores superiores aos que iriam auferir durante o seu contrato. Mais: depois disso podem mudar-se para outro clube português o mais tardar na época seguinte.
Uma decisão tomada anteontem pelo Supremo Tribunal de Justiça, mais do que aplicada ao caso concreto para que foi tomada, poderá revolucionar hábitos no futebol português. Vejamos: o jogador Zé Tó, que representou o União de Leiria, rescindiu unilateralmente o seu contrato no início desta década e foi jogar para os espanhóis do Salamanca. Os leirienses reagiram, explica o advogado José Armando Carvalho, que tem escritório em Setúbal e representou Zé Tó no processo:
— Estava clausulado que o Zé Tó teria de pagar ao U. Leiria dois milhões de contos, hoje sensivelmente dez milhões de euros, mas o clube pediu apenas 80 mil contos, alegando que essa tinha sido a verba gasta para comprar um jogador substituto. Acredito que talvez o U. Leiria tenha percebido que o valor da cláusula era irrealista. Nós alegámos ilegalidade em cinco cláusulas e tivemos resposta positiva em três. Chegou-se depois a um acordo e o jogador pagou vinte mil contos, mas a decisão do Supremo é muito importante daqui para a frente.
Mais importante que particularizar o caso — que legalmente admitiria recurso para o Tribunal Constitucional, mas a parte que perdeu não deverá sequer fazê-lo — é entender as consequências que poderão decorrer da anulação de três cláusulas no acordo anteriormente assinado entre a Liga e o Sindicato.
Mudanças nas indemnizações
Duas, os números 1 e 2 do artigo 50, dizem respeito à responsabilidade do jogador em caso de rescisão unilateral sem justa causa e nelas pode ler-se o seguinte: «1 — Quando a justa causa invocada nos termos do artigo 43.º venha a ser declarada insubsistente por inexistência de fundamento ou inadequação dos factos imputados, o jogador fica constituído na obrigação de indemnizar o clube ou sociedade desportiva em montante não inferior ao valor das retribuições que lhe seriam devidas se o contrato tivesse cessado no seu termo. 2 — Se pela cessação do contrato resultarem para a entidade empregadora prejuízos superiores ao montante indemnizatório fixado no número anterior, poderá aquela intentar a competente acção de indemnização para ressarcimento desses danos, sem prejuízo dos efeitos da rescisão».
Estes pressupostos foram considerados nulos pelo Supremo, que se socorreu do número 27 da Lei do Praticante Desportivo, hierarquicamente superior ao Contrato Colectivo de Trabalho estabelecido entre a Liga e o Sindicato. Esta, precisamente, diz que o limite máximo que um jogador terá de pagar ao clube com o qual rescinde, mesmo sem justa causa, será a soma dos seus salários até ao final do contrato e por nada mais terá de responder.
Explica José Armando Carvalho, o advogado de Zé Tó:
— O Supremo Tribunal entendeu que o Contrato Colectivo de Trabalho entre a Liga e o Sindicato viola a lei, retira benefícios ao futebolista e não o pode fazer. Esta decisão é muito importante, revolucionária, porque daqui para o futuro os jogadores são mais livres, podem terminar os seus contratos, mesmo sem justa causa, e só têm de pagar a indemnização nos moldes que estão previstos, isto é, a soma dos salários que iriam auferir até final do seu contrato.»
Mudanças nas transferências
Mas há mais, porque a decisão anulou igualmente o número 1 do artigo 52, que regula os pressupostos da desvinculação de um jogador em caso de rescisão unilateral e diz o seguinte: «Sem prejuízo da extinção do vínculo contratual no âmbito das relações jurídico-laborais, a participação de um jogador em competições oficiais ao serviço de um clube terceiro na mesma época em que, por sua iniciativa, foi rescindido o contrato de trabalho desportivo depende do reconhecimento da justa causa da rescisão ou do acordo do clube.»
Aqui, o advogado de José Armando Carvalho alegou que, no fundo, tudo isto condiciona a liberdade de trabalho, após o termo do vínculo contratual, violando o disposto na Constituição da República (art. º 18, n.º 1, da Lei n.º 28/98 e nos artigos 47.º, n.º 1 e 58.º, n.º 1 da CRP).
O tribunal concordou: «(...) é por demais evidente que os instrumentos de regulamentação colectiva não podem estabelecer restrições ao direito de liberdade de escolha de profissão, na sua dupla faceta de liberdade de escolha e de liberdade de exercício (...) dúvidas não há de que o art.º 52, n.º1 do CCT celebrado entre a Liga de Futebol e o Sindicato de Jogadores estabelece restrição à liberdade de exercício da profissão (...)».
Na prática, antes desta decisão, um jogador que rescindisse unilateralmente estava impossibilitado de ser inscrito noutro clube enquanto durasse a vigência do seu anterior contrato.
O Supremo, afinal, diz que, extinto o contrato, com ou sem justa causa, o jogador não pode ver coarctada a liberdade de exercer a profissão, ou seja, de passar a representar outro clube.
Há porém, uma ressalva no acórdão, segundo explica o especialista José Leal Amado, cujo entendimento reconhecido na matéria é aliás sublinhado no próprio documento, onde Amado é mencionado. Vejamos o que diz o especialista:
— Atenção: é possível que um jogador que rescinda contrato unilateralmente seja impedido pelas instituições desportivas de representar outro clube português na mesma época. Uma decisão dessas seria válida para o tribunal, diz o acórdão. Contudo, na época seguinte, qualquer sistema que o impeça de representar outro clube, como aquele que está em vigência com este Contrato Colectivo de Trabalho e com o regulamento de competições da Liga, corre, agora, risco de ser declarado inconstitucional, pois isso já seria prejudicar efectivamente direitos de trabalho do atleta. É isso que este acórdão, muito importante, representa. Mesmo que um jogador rescinda unilateralmente, não pode jamais ficar até ao final do seu contrato sem jogar e, pelo menos na época seguinte, a sua inscrição noutro clube será permitida.
Tudo isto num cenário exclusivamente entre equipas nacionais, uma vez que mudanças para o estrangeiro terão de ser negociadas à luz do regulamento internacional de transferências, que tem regras restritivas no que respeita à contratação de jogadores que tenham rescindido contratos sem justa causa. Mas mesmo o regulamento de competições da FIFA já impede que um jogador que rescinda sem justa causa seja punido com a inibição de representar outro clube até ao final do seu contrato. O jogador é autorizado a competir e a questão é depois dirimida entre clubes.
Este caso, claro, uma vez que a decisão é do Supremo Tribunal de Justiça, servirá de modelo para outros. Especificidades no regime de protecção contratual de jogadores, como a das compensações por formação, não foram mencionadas, mas poderão ser metidas ao barulho em casos futuros. Certo é que esta decisão judicial é uma pedrada no charco dos hábitos instalados.
COMO ENQUADRÁ-LAS NA DECISÃO DO TRIBUNAL?
Cláusulas de rescisão em risco
As cláusulas de rescisão com que os clubes protegem os negócios que querem fazer vendendo os seus jogadores também poderão, no futuro, ser questionadas tendo por base a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, explica José Armando Carvalho.
«A partir do momento em que foi agora decidido que o valor máximo que um futebolista terá de pagar ao seu clube para se desvincular será a soma dos seus salários até ao final do seu contrato, não acredito que haja muito espaço para fazer valer as cláusulas de rescisão, embora, admito, possa existir quem as enquadre num regime diferente e tenha uma opinião diferente da minha.»
No fundo, as cláusulas de rescisão que se praticam nos dias de hoje em Portugal já são, regra geral, definidas tendo em atenção os rendimentos do futebolista e têm por base um limite de razoabilidade e bom senso que impede que se peçam valores absolutamente disparatados e sem relação com o real valor do atleta. De qualquer forma, sejam quais forem os valores, se excederem a tal soma dos ordenados previstos no contrato de um futebolista, é possível que possam vir a ser brevemente questionadas. Entende o presidente do Sindicato de Jogadores, Joaquim Evangelista: «Com tudo isto, uma vez que fica estabelecido que um jogador pode sair se pagar os seus salários até ao final do contrato, as cláusulas de rescisão podem vir a deixar de fazer sentido.»
O especialista João Leal Amado, por sua vez, também abre portas para discutir a questão: «Este acórdão afirma a ideia de que há um limite máximo para indemnizar, logo pode colocar, no futuro, uma vez que nada sobre isso diz neste caso, questões sobre as cláusulas, sobretudo as mais absurdas.»
A única forma que os clubes terão de segurar verdadeiramente um jogador é mantê-lo satisfeito em termos salariais e também no que respeita à duração do contrato, sobretudo porque isso poderá implicar, caso ele queira realmente sair, um encaixe financeiro. Ainda assim, os lucros com as transferências correm o risco de baixar.
PRESIDENTE DO SINDICATO, JOAQUIM EVANGELISTA, ESPANTADO
«Ondas de choque tremendas»
O presidente do Sindicato de Jogadores, Joaquim Evangelista, contactado por A BOLA, admitiu que esta decisão do Supremo Tribunal de Justiça poderá mudar radicalmente as regras do futebol português.
«O Contrato Colectivo de Trabalho que foi estabelecido entre a Liga e o Sindicato implicou negociações e cedências. Não é perfeito, não contempla tudo. Ando a tentar revê-lo desde que tomei posse. Pela maneira como leio o acórdão do Supremo, um jogador que rescinda e pague o que tem a pagar ao clube, pode ser inscrito noutro clube português pouco depois. É absolutamente revolucionário e funciona em benefício dos jogadores», entende Joaquim Evangelista.
O presidente do Sindicato, por outro lado, congratula-se por ver o mercado cada vez mais liberalizado.
«A partir deste momento, um jogador só terá de pagar e respeitar os períodos de transferência para mudar de clube. Tudo isto pode implicar muitas mudanças e Portugal pode estar a ser pioneiro numa questão muito importante, que com o tempo poderá condicionar o próprio regulamento internacional de transferências e alastrar-se a outros mercados. Será de esperar algo assim. Deixam de existir sanções desportivas que ponham em causa a liberdade do trabalho, o trabalho é um direito absoluto», aponta Evangelista.
«A própria FIFA tem normas que podem ser questionadas assim que casos específicos sejam analisados e passar a servir de regra para outros. Cada vez mais, as entidades empregadoras e os trabalhadores precisam de ter uma visão de conjunto. O Desporto não é um mundo à parte. Temos de nos ir preparando todos, haverá ondas de choque tremendas », avisa o presidente do Sindicato de Jogadores.
O que pode mudar para clubes portugueses?
Tão bons... tão baratos
Ahistórica decisão do Supremo Tribunal de Justiça de anular algumas limitações laborais dos futebolistas profissionais vai facilitar o trânsito de atletas entre clubes. Com as cláusulas de rescisão ameaçadas e maior liberalização das relações contratuais, os principais craques dos maiores clubes passam a estar disponíveis a preços de saldo. Imagine-se o que seria se Simão Sabrosa quisesse deixar o Benfica para assinar pelo FC Porto, e se o portista Lucho Gonzalez decidisse trocar o dragão por Alvalade. E que, para completar o circuito, o Benfica aproveitava para contratar Liedson ao Sporting...
A partir de agora os jogadores de futebol profissional em Portugal passam a ter direitos mais parecidos com os trabalhadores que têm contratos de trabalho a prazo com empresas privadas. Podem sair quando quiserem, desde que compensem o patrão com uma verba idêntica aos salários que teriam de receber até final do contrato [ver páginas 2 e 3]. A confirmar-se a aplicação prática desta mudança no regulamento de transferências, craques passam a estar disponíveis a preços mais baixos, se não logo na mesma época, pelo menos na época seguinte.
Simão, estrela do Benfica avaliada em 20 milhões de euros por Luís Filipe Vieira, passará a ser livre de deixar a Luz desde que pague ao clube os 40 meses de contrato que lhe faltam cumprir. O valor a receber pelo Benfica rondaria, pois, os 5 milhões de euros — quatro vezes menos do que o pretendido por Filipe Vieira. E a cada mês que passe, a esta verba teriam de ser deduzidos cerca de 125 mil euros.
Outro exemplo, para ilustrar a ameaça de rombo nas finanças dos clubes, é o do portista Lucho González. Com um ordenado de 60 mil euros por mês e contrato até 2011, o internacional argentino poderia apresentar-se no Estádio do Dragão para rescindir contrato, desde que levasse um cheque de 3,1 milhões de euros. E na próxima época poderia rumar a outras paragens.
Sporting em apuros?
Já em Alvalade, Liedson também ficaria livre a preços de saldo: 4,4 milhões de euros pelo Levezinho mais valioso do clube de Alvalade. Números impressionantes, para fazerem tremer os dirigentes do clube. E que dizer de Nani, jovem promessa que recebe 12 mil euros por mês e tem contrato até 2008? O avançado está em negociações para firmar um novo contrato, mas se decidisse abandonar Alvalade teria de pagar 192 mil euros. Uma tragédia para o clube com quem negoceia cláusula de rescisão de 20 milhões! No caso de Nani, no entanto, o Sporting teria de receber ainda uma compensação pela formação.
Tudo isto são ameaças muito fortes que estão no ar e que urgem discussão, sobretudo porque a validade das próprias cláusulas de rescisão, à luz do que foi decidido agora pelo Supremo, também pode estar em causa.
in A BOLA